Revista de filosofía

Foucault e Butler en torno de Herculine: Que significa resistir ao dispositivo da sexualidade?

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ODD NERDRUM, “HEMAPHRODITE” (1983)

 

Resumo

Neste artigo discute-se a crítica de Butler ao trabalho de Foucault sobre o caso Herculine Barbin. Segundo Butler, teria sido analizado pelo filósofo de modo a desconsiderar vários aspectos no que toca à performance da sexualidade, do mesmo modo que idealizaria o caso, arrancando-o da história e de suas redes normativas. Contrariamente à Butler, o que tenta-se trazer aqui é luz sobre os argumentos de Foucault que compreenderia os exercícios ou a experiências de sexualidade de Herculine como pluralidades de possíveis condutas voluntárias que se afrontam à exigências normativas do dispositivo da sexualidade, mas que se recusam a vincular tais práticas, corpos, prazeres e saberes à busca da verdade interior do sujeito. Não se trataria de transcender o dispositivo da sexualidade mas de torcê-lo.

Palavras-chave: dispositivo de sexualidade, corpo, gênero, Butler, Foucault, Herculine.

 

Abstract

In this paper it’s discussed Judith Butler’s critique of the work of Michel Foucault on the case of Herculine Barbin. The case, according to Butler, would have been analyzed by the French philosopher in order to disregard important aspects concerning the performance of sexuality. Contrary to Butler’s interpretation, what is attempted here is to shed some light on Foucault’s arguments which, in our view, would understand Herculine’s exercises of sexuality as pluralities of possible voluntary conducts that confront the normative demands of the device of sexuality, but which refuse to link such practices and knowledge to the search for the inner truth of the subject. Thus, it would not be a matter of transcending the device of sexuality, as Butler thought, but of twisting it.

Keywords: dispositif of sexuality, body, gender, Butler, Foucault, Herculine.

 

Este texto discute o misterioso apelo de Michel Foucault aos corpos e aos prazeres como instâncias de resistência a efeitos de captura disciplinar e biopolítica proporcionados pelo dispositivo da sexualidade. Primeiramente, abordamos rapidamente a análise foucaultiana sobre o sexo como mecanismo de estruturação do assim chamado dispositivo da sexualidade ao longo do século XIX até nossos dias. Num segundo momento, passamos à análise proposta por Judith Butler a respeito dos modos como Foucault retratou o caso de Herculine Barbin, hermafrodita da segunda metade do século XIX, cujo relato autobiográfico o autor francês discute no prefácio de 1980 à tradução norteamericana do livro Herculine Barbin, dite Alexina B., publicado na França em 1978 no marco da coleção de Gallimard dirigida por ele mesmo, Les vies parallèles.

De acordo com a leitura proposta por Butler, parece que Foucault tomou o relato biográfico de Herculine como paradigmático sobre o que significa resistir ao dispositivo da sexualidade no nosso próprio tempo. Butler dá a entender que Foucault tomaria o caso de Herculine como paradigmático para sua própria referência aos cuerpos e aos prazeres como fontes do contra-ataque às ações de captura de corpos e sexualidades pelo dispositivo da sexualidade. Dessa maneira, para Butler o problema é que com tal referência Foucault cairia em contradição sobre certos pressupostos fundamentais de seus próprio método genealógico,, pois deixaria supor a existência de um corpo e de um prazer a-históricos, que se encontrariam antes ou fora do próprio dispositivo que os produziu. O que comprovaria isso seria justamente a maneira surpreendente que Foucault interpretou a existência de Herculine, ou seja, como de um ser distanciado das determinações normativas do dispositivo da sexualidade. Resumidamente, segundo Butler tudo acontece como se Foucault enfatizasse algo como a potência vial de um corpo e de um prazer em estados puros ou naturais, vale lembrar, como instâncias ontológicas separadas das formações de saber-poder que tornaram possível a existência historicamente determinada dos sujeitos de sexualidade.

Do nosso ponto de vista, não obstante, Foucault não faz do relato de Herculine um exemplo privilegiado quanto ao que significa resistir ao dispositivo da sexualidade no nosso tempo. Para isso, estabelecemos uma comparação entre as versões em inglês e em francês do texto chamado “O verdadeiro Sexo”.[1] Se lemos a versão francesa, não considerada por Butler, veremos que Foucault situa Herculine no marco de uma formação de poder-saber historicamente determinada, o poder pastoral, muito diferente do dispositivo da sexualidade. Como veremos mais adiante, para Foucault, Herculine assinalaria o encontro entre poder pastoral e dispositivo da sexualidade, o qual começaria então então a se tornar hegemônico historicamente. Por esse motivo, Butler tampouco teria razão ao sugerir que o autor francês contradiría seu método genealógico ao recorrer às figuras dos corpos e dos prazeres como fontes de resistência, as quais, obviamente, não podem ser entendidas como entidades separadas das configurações históricas de saber-poder. Por um lado, já a própria Herculine se encontrava submetida ao encontro dos dispositivos de saber-poder distintos, o pastoral e o daesexualidade, e portanto jamais poderia ser entendida como personagem distanciado da história. Por outro lado, o apelo de Foucault aos corpos e aos prazeres não entraria no relato deste personagem do passado uma fundamentação para as ações de resistência dos sujeitos do presente.

Mas então, o que Foucault teria querido dizer ao fazer referência aos corpos e prazeres? Na conclusão, propomos a hipótese de que ao pensar as práticas sexuais, os corpos e os prazeres como possivelmente dissociáveis do império do “sexo-desejo”, Foucault enfatizava o exercício de condutas ou contra-condutas sexuais enquanto campo de experimentações destinadas a produzir transformações em sí mesmo e nos demais, por meio da promoção de novas formas de relação entre os sujeitos.

ODD NERDRUM, “THE KISS” (2002)

 

Corpos de prazeres entre Foucault e Butler

De maneira semelhante a diversas passagens de seus livros, no final do volume I de sua História da Sexualidade, A vontade de saber, Foucault simula um debate com um interlocutor imaginário. Trata-se aí de se enfrentar com a objetivação de um suposto “historicismo mais apressado do que radical”, aspecto que lhe teria conduzido a falar da sexualidade como efeito histórico de relações de poder e de saber “como se o sexo não existisse”.[2]

Segundo esta objeção, as análises de Foucault chegariam a uma conclusão absurda, a um discurso sobre a sexualidade desprovido do sexo. A esta crítica Foucault respondeu que sua análise da sexualidade como efeito de um dispositivo histórico não tentava apagar o corpo ou o biológico da história, mas que, por outro lado, procurava mostrar como poderes e saberes históricos se apoiaram sobre e ao mesmo tempo constituído o corpo como unidade centrada no sexo. Para Foucault, “longe do corpo ter sido borrado, trata-se de fazê-lo aparecer numa análise onde o biológico e o histórico não se sucederiam … mas se ligariam com acordo a uma complexidade crescente conformada ao desenvolvimento das tecnologias modernas de poder que tomam como alvo seu a vida”.[3]

O que importava para Foucault, principalmente, era mostrar que o dispositivo histórico de saber-poder em torno da sexualidade fizesse do corpo, da vida e do biológico um problema de múltiplas significações, e que no interior de sua trama complexa o ‘sexo’ como noção suprema fez sua aparição. Em outras palavras, Foucault nos mostra quando e como o sexo se modificou em princípio de inteligibilidade de nós, de maneira que nossas condutas, práticas e concepções a respeito se fizeram motivo de vigilância, punição, correção, exame e de hierarquização normativa entre normalidade e anormalidade. Para Foucault, ao invés de ser uma entidade simplesmente dada na natureza, o ‘sexo’ seria uma ideia especulativa confusa, ambígua, e desprovida de realidade, mas sumamente operativa no interior do dispositivo da sexualidade, o qual não pode funcionar sem pressupô-lo como seu ponto de apoio real e como âncora de uma “inteligibilidade” e da “identidade” de cada um.[4] Além disso, o ‘sexo’ como ponto-chave do dispositivo da sexualidade se enlaçaria às figuras históricas do desejo de sexo e do seo como desejo, ou seja, como “desejo de tê-lo, desejo de acessá-lo, de descubrí-lo, de liberá-lo, de articulá-lo como discurso, de formulá-lo como verdade”.[5] Em síntese, o ‘sexo’ como objeto supremo do desejo nos mantém vinculados ao dispositivo da sexualidade e é justamente este mecanismo que faz projetarmos nosso ser, nossa verdade e nossa identidade nele: “essa desejabilidade nos faz crer que afirmamos contra todo poder os direitos de nosso sexo, quando na realidade nos amarra ao dispositivo da sexualidade que ha hecho subir do fundo de nós mesmos, como um espelhismo no qual acreditamos nos reconhecer, o brilho negro do sexo”.[6] Por isso Foucault afirmou, ainda que de maneira enigmática, que contra o “ dispositivo da sexualidade, o ponto de apoio e contra-ataque não deve ser o sexo-desejo, mas os corpos e os prazeres”, entendidos em “sua multiplicidade e possibilidade de resistência”, conveniando primeiro que nos liberemos da “instância do sexo”.[7]

O que Foucault teria querido dizer com essa afirmação? Antes de considerar esta questão, é necessário voltar à crítica que Judith Butler propôs a alguns aspectos centrais da reflexão de Foucault sobre a sexualidade, mais particularmente sobre suas críticas a certas afirmações foucaultianas da introdução da tradução norteamericana do relato de Herculine B., publicada nos Estados Unidos em 1980, onde, julga Butler, estariam em contradição com os postulados genealógicos da Historia de la Sexualidad, de 1976. A seguir, mais do que avaliar a pertinência das interpretações de Foucault e de Butler sobre o relato de Herculine, tarefa realizada recentemente por Éric Fassin, trata-se aqui de antes investigar o que nos revela a crítica de Butler a Foucault em relação a como pensar a concepção foucaultiana de resistência no campo do dispositivo da sexualidad.

Em sua obra, Problemas de Gênero, Butler argumenta que os substantivos ‘homem’ e ‘mulher’ só podem ser entendidos como entidades ontológica estáveis, identificáveis, reais ou substanciais enquanto sejam efeitos produzidos, reproduzidos e regulados pelo binarismo de gênero articulado ao princípio da heterossexualidade normativa, o qual estabelece a inteligibilidade dos gêneros a partir de uma relação causal entre sexo-gênero-desejo, na qual os opostos se atraem. Para demonstrar o caráter contingente desta construção histórica Butler recorre justamente à análise de Foucault sobre o caso de Herculine Barbin, também chama Alexina, personagem da segunda metade do século XIX que médicos e juristas obrigaram a assumir seu “verdadeiro sexo” e a se transformar em Abel, o que, finalmente, culminou em seu suicídio. Dois argumentos de Foucault importaram a Butler: 1) sua demonstração de que a noção mesma de ‘sexo’ remete ao dispositivo da sexualidade, da qual ela depende, de maneira que o ‘sexo’ não pode ser uma simples instância natural; 2) e a crítica de Foucault à noção de que haveria algo como um “verdadeiro sexo”, o qual designaria a verdade da identidade de gênero de cada ser, idéia que também está em relação de dependência com o dispositivo de sexualidade. Segundo Butler, “o questionamento genealógico de Foucault mostra que esta suposta ‘causa’ é um ‘efeito’, a produção de um regime dado de sexualidade, que tenta regular a experiência sexual ao determinar as categorias discretas do sexo como fundacionais e causais no seio de qualquer análise discursiva da sexualidade”.[8]

NAN GOLDING, “RISE AND MORTHY KISSING” (1980)

Segundo Butler, a análise de Foucault faz de Herculine uma figura não passível de categorizar-se em termos da identidade binária de gênero, de maneira que seus prazeres e práticas sexuais se fariam desconectadas da lógica do binarismo de gênero orientado para a heterossexualidade normativa, e seus atributos de gênero apareceriam então como “qualidades sem uma substância permanente à que supostamente se acrescentem”.[9] Mesmo que Butler aceite a ideia de inspiração foucaultiana de que o gênero não constitui uma realidade substancial cuja casa primeira fosse o ‘sexo’, ela detecta no pensamento do autor francês uma ontologia rara de atributos de caráter livre e flutuante, segundo a qual as qualidades de gênero se encontrariam isoladas com relação a uma base normativa previamente determinada. De fato, na Introdução de 1980 à tradução norteamericana do relato de Herculine, Foucault não só afirma que, antes de sua captura nas tramas do dispositivo da sexualidade, ela vivia em um “mundo de impulsos, de prazeres, de tristezas, de afetos mornos, de suavidades e amarguras, onde a identidade dos participantes e sobre tudo do personagem enigmático ao redor do qual tudo se amarra fosse sem importância”, como também acrescenta que tudo lhe acontecia como se ela vivesse num mundo de prazeres sem corpo ou de “sorrisos sem gato”, em refência ao gato de Cheshire da obra de Lewis Carrol, Alice no país das maravilhas. (“It was a world in which grins hung about without the cat”.[10] Neste contexto, Foucault também afirma que quando Alexina escreve seu diário, já sob o impacto da descoberta de seu “verdadeiro sexo”, “ela é para ela mesma sem sexo certo; porém impedida de disfrutar das delícias que provava em não tê-lo ou em não ter exatamente o mesmo (“tout à fait le même”) que aquelas com as que vivia, e amava, e desejava fortemente.[11]

Butler considera que Foucault atribuiria a Herculine, de maneira equivocada, uma experiência corporal e sexual plenamente indeterminada, ou seja, a experiência de uma vida vivida na ausencia de qualquer opressão normativa em relação a sua identidade de gênero e sexual, questão que somente lhe seria imposta uma vez que determinada a verdade de seus sexo por médicos e juristas. Para Butler, ao pensar o gênero como conjunto de categorías flutuantes e que podem aderir tanto ao homem quando à mulher, Foucault teria desconsiderado que nenhum sujeito pode existir no mundo sem que uma identidade sexual e de gênero lhe tenha sido assinalada e e pela qual teria que responde de uma maneira ou outra.

Resumidamente, Foucault teria idealizado o relato de Herculine até o ponto de ver naquele personagem uma existência impossível, já que utópica ou nostalgicamente, uma pessoa que viveria no “limbo alegre de uma não-identidade”,[12] palavras do autor que Butler interpreta como alusivas a uma experiência de gênero e da sexualidade anteriores à lei ou à normatividade. Por esse motivo Foucault teria deixado de compreender que se o “gênero não é um substantivo”, tampouco pode ser entendido como “um conjunto de atributos vagos”.[13] Butler também interroga o que lhe parece ser um resíduo ontológico nã questionado na reflexão de Foucault, ou seja, a ideia de que o corpos ambíguo de Herculine guardaria em si mesmo uma fonte positiva de prazeres e de resistências ao dispositivo da sexualidad. Porém, como supor a existência de um corpo, de um seo e de seus prazeres anteriores a sua própria constituição pelo dispositivo da sexualidade? Ou, como o formulou Arianna Sforzinni, “há un elemento, uma força, uma natureza no corpo que poderia escapar às técnicas do poder? Qual instância no seio da vida dos corpos poderia resistir ao sujeitamento e à normatização dos próprios corpos?”.[14]

Em primeiro lugar, Foucault não desconsiderou o campo socio-normativo no qual se desenvolve a vida de Herculine antes que as redes do dispositivo da sexualidade se abatessem sobre ela. Também não consideramos que se encontre no pensamento de Foucault o rastro de um vitalismo oculto ou dissimulado, que lhe permitiria formular a ideia de uma potência imanente ao corpo e a suas possibilidades de prazer, irredutíveis e exteriores a um determinado dispositivo normativo de poder-saber como ideal regulador da sexualidade e do gênero. Se Foucault parece compreender o relato de Herculine sobre seu corpo, seus afetos e prazeres como a memória melancólica de uma vida feliz e interrompida, isso não significa que o autor considere aquela personagem como figura exemplar de uma potência secreta de Eros. Não por outro motivo, em uma entrevista de 1978, “Le gay savoir”, Foucault asevera que “as práticas proibidas fazem parte do funcionamento da lei que as proíbe”.[15] Em outros termos, antes que as malhas do dispositivo da sexualidad emaranhassem o corpo, os afetos e os prazeres de Herculine, sua vida já se desenrolava sob outra rede normativa, que, não obstante, não se caracterizava pelo exame metódico do corpo, mas pelo exame rigoroso das consciencias: o poder pastoral, típico do ambiente monossexual ou homossocial onde ela vivia. O que Foucault vislumbra no relato de Herculine não é, pois, a ficção impossível de um corpo, um sexo e uma não-identidade de gênero, originários e não colonizados por qualquer dispositivo de poder-saber, mas uma experiência histórica e social muito particular do corpo, seus afetos e seus prazeres sob o poder pastoral. Segundo Foucault, somente tal espaço monossexual poderia “acolher as graduações, os moirés, as penumbras, os coloridos furta-cores como a natureza mesma de sua natureza. O outro sexo não está aí com suas exigências de compartilhar e de identidade…”.[16] Naquele mundo comandado pelo poder pastoral, quase totalmente fechado em torno de mulheres, a ninguém se impunha a tarefa de interrogar a identidade sexual de ninguém, nem sequer se impunha a exigência de determinar a identidade sexual e de gênero de alguém por meio de um exame circunspecto de seu corpo e seu sexo. Tais considerações sobre o poder pastoral, no entanto, não se encontram no texto da Introducción à tradução para o inglês do relato de Herculine, que Butler usou, mas apenas na versão francesa publicada no mesmo ano de 1980, no número 323 da Revista Arcadie, em cuja versão Foucault fez algumas observações a respeito.

NAN GOLDIN, “JIMMY PAULETTE & MISTY IN A TAXI” (1991)

No texto da revista Arcadie Foucault também enfatiza que o mundo onde Herculine vivia se orientava pela “discrição” característica da direção cristã de consciências, à qual se esmerava em discriminar desejos e pensamentos até o “infinito” para saber se eles vinham de “Deus” ou do “ Sedutor”.[17] Não obstante, os responsáveis pela direção de consciências sabiam até onde e quando interromper suas questões, sabiam o que dizer e o que calar, deixando “na sombra o que se tornaria perigoso à luz do dia. Se pode dizer que Alexina pôde viver durante muito tempo neste claro-escuro do regime de ‘discrição’ do convento, do internato, e da monossexualidade feminina cristã”.[18] De outra parte, sob o regime normativo do dispositivo da sexualidade, com seus imperativos analíticos da natureza médica, jurídica e administrativa, o que antes pôde permanecer oculto se “deveu manifestar e compartilhar claramente. De modo que já não é, verdadeiramente, da discrição que se tem que falar, mas da análise”.[19] Dessa maneira, a afirmação de Foucault quanto à “não-identidade” de Herculine não significa que o autor francês a entenderia como um ser separado da identidade de g6enero, mas simplesmente que em seu ambiente não carecia perguntar por tal identidade. Além disso, Foucault tampouco a compreende como um ser misterioso, portador de uma oculta potência do corpo, do sexo e dos prazeres anteriores a qualquer normatividade, mas como experiência possível no mundo pastoral cuja discrição podia acolher a ambiguidade e fazer dela algo como uma segunda natureza.

Para concluir resta perguntar, como o fez Philippe Sabot, se acaso Foucault, ao contrapor o regime monárquico do sexo à multiplicidade anárquica dos corpos e dos prazeres, não acabaria por fazer deste últimos uma “construção reativa”, ou seja, se ele não os transformaria num “ideal ilusório, nostálgico e utópico de uma criatividade erótica anterior à lei do gênero”.[20] Pensamos que não. De nosso ponto de vista, ao recorrer à multiplicidade plural das práticas sexuais, os prazeres, os corpos e os saberes, Foucault não os idealizaria, arrancando-os da história e de suas redes normativas, mas os compreenderia enquanto exercício ou experiência refletidos. Quer dizer que Foucault estaria pensando em uma pluralidade de possíveis condutas voluntárias que se afrontem às exigências normativas do dispositivo da sexualidade, na medida em que recusam vincular tais práticas, corpos, prazeres e saberes à busca da verdade interior do sujeito. Não se tratava de transcender o dispositivo da sexualidade, como pensou Butler, mas de torcê-lo, de fazê-lo exibir suas fendas e rachaduras. Como disse Éric Fassin, “a constituição do sujeito político em relação ao poder ao qual ele resiste supõe pensar a subjetivação no sujeitamente (e não para fora dele)”.[21]

Do nosso ponto de vista, o apelo de Foucault aos corpos e aos prazeres se amara na disseminação das práticas e contra-saberes que deformam e pervertem as verdades científicas e morais associadas aos comportamentos sexuais daqueles sujeitos que surgiram historicamente em posição marginal com relação aos modelos hegemônicos da conduta heterosexual destinada à procriação. Por isso Foucault criticava o recurso à sexologia e aos saberes do campo psi, os quais fazem do sexo e do desejo os fundamentos misteriosos para a descoberta de supostas verdades da identidade sexual. Por sua vez, a referência ao prazer lhe parecia bastante mais interessante, uma vez que “não há, no final das contas, prazer ‘normal’, não há ‘patologia’ do prazer”, como ele afirmou no “Le gay savoir”, entrevista onde também contrapõe a interioridade do desejo e da sexualidade ao prazer entendido como “acontecimento”, ou seja, como algo que “se produz fora do sujeito, ou no limite do sujeito, ou entre dois sujeitos, nessa coisa qualquer que não é nem corpo, nem alma, nem exterior, nem interior”.[22] Por esse motivo, ao se referir às condutas de resistência no campo da sexualidade, Foucault nunca falou positivamente do ‘sexo’, mas sempre e apenas de corpos, prazeres e práticas sexuais.

Se a afirmação de Butler que “a sexualidade sempre se constitui dentro do que determinam o discurso e o poder”[23] é igualmente válida para Foucault, ficam ainda diferenças que demarcam suas reflexões. Para Butler, o proprio caráter produtivo das relações normativas de poder, as quais constituem o gênero e o ‘ser’ homem ou mulher por meio de performances repetidas, o eixo que faz possível a produção de sexualidades que “se afastam de seus objetivos originais e involuntariamente dão lugar a possibilidades de ‘sujeitos’ que não só ultrapassam as fronteiras de inteligibilidade cultural, mas que em realidade ampliam os confins do que, de fato, é culturalmente inteligível”.[24] Para Foucault, por outro lado, o apelo aos corpos, às práticas e aos prazeres como instâncias de resistência supunham decisões voluntárias, autônomas e mais ou menos refletidas, pelas quais certos indivíduos tentam se libertar, mesmo que apenas parcialmente, das redes normativas hegemônicas do dispositivo da sexualidade ao se constituirem como sujeitos que seguem e adotam outros marcos normativos. Pode inclusive, como disse Foucault no “Le gay savoir”, que neste processo de enfrentamento e resistência, os prazeres contribuam à liberação do sujeito dos imperativos do sexo-rei, uma vez que “as intensidades do prazer estão ligadas ao fato da gente se dessujeitar, deixar de ser um sujeito, deixar de ser uma identidade,” ainda que apenas por ínfimos instantes de transbordamento.[25]

GEORGIA O’KEEFFE, “NUEDE SERIES VIII” (1917)

A Foucault interessavam as práticas, as condutas, os modos e maneiras de viver e a ampliação do Horizonte de relaciones possíveis entre sujeitos distintos. Este era o eixo em torno do qual se poderiam organizar novas formas alternativas de viver e conviver, novas formas de amor e de amar, sem que necessitássemos interrogar a cada vez pela suposta verdade da identidade sexual e de gênero dos amigos e amantes.

 

Bibliografía

  1. Butler, J., El género en disputa. El feminismo y la subversión de la identidad, Barcelona, Paidós, 2007.
  2. Fassin, É., “Posface” à Herculine Barbin dite Alexina B, Gallimard, Paris, 2014.
  3. Foucault, M., “El verdadero sexo”. Traducción de Viviane Bagiotto-Botton a partir de Herculine Barbin dite Alexina B., Gallimard, Paris, 2014, Consultada en: https://www.academia.edu/12755609/Traducción_Foucault_Michel._El_verdadero_Sexo
  4. Foucault, M., “Introduction” to Herculine Barbin, Pantheon, New York, 1980.
  5. Foucault, M., “O saber gay”. In Ecopolítica 11, jan.-abr. de 2015.
  6. Foucault, M., Historia de la Sexualidad I. La voluntad de saber, Siglo Veinteuno, Madrid, 1998.
  7. Sabot, P., “Sujet, Pouvoir et Normes: de Michel Foucault à Judith Butler” In: E. Jolly y Ph. Sabot (dir.) Michel Foucault. A l’épreuve du pouvoir. Vie, sujet, résistance, PUS, Villeneuve d’Ascq, 2013.
  8. Sforzini, A., Michel Foucault, une pensée du corps, PUF, Paris, 2014.

 

Notas

[1] Este texto foi traduzido e publicado aqui na Revista Reflexiones Marginales número #39 [Nota dos editores].

[2] Foucault, M. Historia de la Sexualidad I. La voluntad de saber, Siglo XXI, Madrid, 1998, p. 90.

[3] Idem.

[4] Ibidem, p. 92.

[5] Ibidem, p. 93.

[6] Ibidem, p. 98.

[7] Ibidem, p. 93.

[8] Butler, El género en disputa, El feminismo y la subversión de la identidad, Paidós, Barcelona, 2007, p. 82.

[9] Ibidem, p. 83.

[10] Foucault, El verdadero sexo, 1980, In: “El verdadero sexo”, Tr. de Viviane Bagiotto-Botton a partir de Herculine Barbin dite Alexina B., Gallimard, Paris, 2014. Consultada en: https://www.academia.edu/12755609/Traducción_Foucault_Michel._El_verdadero_Sexo, p. xiii.

[11] Ibidem, p. 6.

[12] Idem.

[13] Butler, Op. cit., p. 84.

[14] Sforzini, Op. cit., p. 64.

[15] Foucault, M., “O saber gay” ed. cit., p. 12.

[16] Ibidem, p. 7.

[17] Ibidem, p. 6.

[18] Idem.

[19] Idem.

[20] Sabot, “Sujet, Pouvoir et Normes: de Michel Foucault à Judith Butler” In: E. Jolly y Ph. Sabot (dir.) Michel Foucault. A l’épreuve du pouvoir. Vie, sujet, résistance, PUS, Villeneuve d’Ascq, 2013, p.13.

[21] Fassin, É. “Posface” à Herculine Barbin dite Alexina B., Gallimard, Paris, 2014, p. 236.

[22] Foucault, “O saber gay” ed. cit., p. 8.

[23] Butler, Óp. cit., p. 93.

[24] Ibidem, p. 92; grifos nossos.

[25] Foucault, “O saber gay” ed. cit., p. 22.